31 dezembro 2010

O perdido – Capítulo V

Só eu mesmo pra te trazer à praia num dia de chuva, Pedro. Mas você parece que não está ligando muito pra isso. Você gosta mesmo de chuva, não é meu filho?

Passou! Vem tirar essa roupa molhada, menino!

Ei, Pedrinho, por que você não veio à escola hoje? Eu senti sua falta. E nem choveu tanto. Você podia ter vindo...

Ôxi! Mas na chuva Pedro? Querido, assim não dá... Que mania de água que você tem!

Não, meu bem, não liga o chuveiro, não... Eu sei, você gosta, mas a gente está de roupa. Ai, não me pega assim, hum, Pedro, hum...

O tempo fechou, sua mulher está chegando!


Pai, me leva pra praia?

23 dezembro 2010

O perdido – Capítulo IV

Há uma particularidade pluviométrica incomum em Salvador. Pode chover muito – muito mesmo – e logo depois fazer um sol de rachar. O dia está lindo quando P. alcança a Ladeira da Barra. O sol derrama raios alegres sobre o perdido que aprendemos a amar.

O ônibus chega ao farol. Era de fato ali o local de sua lembrança. P. olha em volta. Se já esteve ali antes, não foi há pouco tempo. Talvez tenha sido na sua infância, ou num tempo tão distante que somente havia nuvens em sua memória. O tempo fecha em sua cabeça, contrastando deprimentemente com o tempo à sua volta.

P. sente que voltou à estaca zero. Sente-se tão cansado e sem saber o que fazer ou para onde ir que decide ficar ali mesmo, sentar-se na areia da praia e olhar o mar. Esquecer um pouco de que precisava se lembrar de algo.

Os biquínis e sungas multicoloridos compõem um espetáculo à parte aos olhos de P. Sua atenção se divide entre o mar e as pessoas que o circundam. Tão diferentes, tão alheias a seu problema que quase falou com alguma delas. Mas decidiu não perturbar pessoas tão felizes que iam à praia em plena quarta- feira.

!

Quarta! Era quarta feira!

17 dezembro 2010

O perdido – Capítulo III

Parece que toda vez que não dá pra piorar as coisas pioram. Pioraram. Agora P. está sentado no Campo da Pólvora chorando. E o céu resolve se juntar a ele. Chove. Torrencialmente. Salvador é um dos poucos lugares que combinam de maneira tão incômoda chuva e calor.

P. corre até a marquise do fórum e se protege como pode daquele pé d’água inesperado.

Corre, filho! Cuidado para não se molhar! Ali, vamos para aquela marquise ali! Pronto, agora a gente espera a chuva passar. Você se diverte, hein? Danadinho.

Que fora aquilo? Um lampejo de memória? Algo lhe dizia que sim. Mas quem eram aquelas pessoas? Não sabia o que intuir daquela imagem mental que fora desencadeada... pelo quê? Talvez pela corrida até a marquise. O fato é que pelo menos parte de sua memória – uma parte pequena, é verdade – estava voltando. Mais cedo ou mais tarde lembraria de tudo.

Mas quanto tempo mais tarde?

O nosso perdido acha melhor tentar passar pelo maior número possível de lugares para ver se lembrava de mais alguma coisa. Mas, por onde começar? Vamos ver... onde ocorrera a cena de que lembrara? Tinha um farol... Bem em frente ao prédio onde se abrigara... Um farol...

A chuva passa. P. segue até o ponto de ônibus e observa as placas dos veículos. O itinerário. Está prestes a pedir informação àquela senhora com rosto vagamente simpático quando lê: Avenida Sete, Farol da Barra, Ondina... Só pode ser isso. O farol de sua – única – lembrança era o Farol da Barra. P. pega o ônibus e parte em busca de memórias.

16 dezembro 2010

O perdido – Capítulo II

O sol até tenta sorrir para ele, mas os raios que deveriam acolhê-lo apenas conseguem irritar P. Depois de passar a noite – abafada – sob a estátua de Castro Alves, a última coisa que aquele perdido queria era ser acordado pelo sol. Dormira apenas cerca de três horas, sempre acordado pelos ruídos da noite, já que não tinha o costume de dormir ao relento (isso ele percebera nos primeiros cinco minutos, deitado no chão duro e úmido).

Mas que fazer agora? Ainda não consegue se lembrar de nada antes de quase ser atropelado. Mas sente fome. Retira a carteira do bolso e descobre que ali há algum dinheiro. Desce a Ladeira da Barroquinha e toma entra num restaurante-bar-boteco obscuro daquela parte da cidade onde (evidentemente) não sabe se já esteve, mas poderia garantir que nunca antes visitara.

Parece que o dia não chega totalmente naquele ambiente sombrio e ligeiramente úmido. P. ainda tenta se questionar porque escolhera aquele lugar para comer, mas percebe que seus recursos são limitados, e que não sabe quanto tempo vai ficar ainda na rua. Decide-se: vai ser ali seu desjejum. Tudo isso demorou alguns segundos para ser processado pela abalada mente de P., enquanto a mulher de batom vermelho – último resquício de uma sensualidade perdida há séculos – o observa por detrás do balcão.

Ele se senta e aguarda.

A mulher diz, um tanto ríspida:

- Vai querer o quê?

Decide-se pelo queijo quente e café-com-leite. Pelo menos agora pode pensar sossegado, com o estômago feliz. Caminha pela Baixa dos Sapateiros e sobe em direção ao Campo da Pólvora, onde se senta para pensar. olha em volta, ainda perdido. Mudou algo em seu estômago, não em sua cabeça.

À sua volta, a mesma hemorragia humana do dia anterior, só que em outro lugar. Novamente nenhum conhecido. Novamente nenhuma lembrança.

P. resolve chorar.

15 dezembro 2010

O perdido - Capítulo I

Era uma manhã um tanto chuvosa e muitíssimo quente. P. caminhava um tanto apressado no centro da cidade. Seres totalmente alheios uns aos outros se desviavam das hastes dos guarda-chuvas somente para depois seguirem apressados até seu destino. Sem sequer notar essas particularidades, P. prosseguia.

Sinal fechado. Uma pausa. Verde: P. atravessa. Quero dizer, tenta atravessar, porque bem no meio da rua, entre a Fundação Politécnica e o Relógio de São Pedro, P. para.

Olha em volta...

Tenta perceber qualquer coisa que lhe devolva a memória: quem ele é, o que estava fazendo ali e principalmente que barulho era aquele.

- Sai daí, seu maluco!

Qualquer coisa o faz se mover, aos tropeções até o outro lado da rua. Senta-se num banco para pensar. E agora? Um perdido no meio de uma cidade que parece caminhar sem freio, uma hemorragia de gente passando e nenhum rosto que lhe traga qualquer lembrança. Decide que não pode ficar ali, parado. Segue pela Avenida Sete até encontrar o poeta.

14 dezembro 2010

Marietta

- Só doido pra falar contigo! Tu só entende conversa de doido, mesmo!, explodiu o já impaciente marido de Marietta.

Escrito assim, com dois tês. “Coisa da minha mãe”, dizia ela, orgulhosa. O fato era que, coisa de mamãe ou não, ela adorava acrescentar, após dizer o nome: “É com dois tês, viu?”. Marietta era mesmo meio doida. Mas nada do que Paulo a acusava era verdade de todo, embora não fosse de todo mentira. Pois Marietta era dessas mulheres que têm segredos.

Não que tivesse de esconder alguma coisa. Guardava segredos pelo simples prazer de ter algo que lhe pertencesse, que fosse dela e de mais ninguém: um segredo, enfim. Eram quase sempre coisas banais: um pequeno produto comprado sem que o marido soubesse, uma travessura de pequena que não contara a Odete ou que estava grávida de dois meses.

Somente uns dias depois de descobrir a gravidez é que percebeu a impossibilidade de guardar por muito tempo um segredo que literalmente saltaria aos olhos em pouco tempo. Teve de contar, meio contrariada de dividir isso com Paulo. Lá vinha ele subindo a infinita ladeira que o levaria para casa, o último casebre no alto do morro, com vista exclusiva para a praia de Tubarão...

- Mô, começou ela.

- Diz...

Mau sinal. Mau humor numa hora dessas?

- Eu queria te falar uma coisa.

- Já está falando, Marietta.

Xii! O negócio tá feio.

- Tô grávida e tô sabendo há umas quatro semanas já.

Como se fosse a coisa mais normal do mundo. Aí, já viu, né. Por que eu sou o último a saber, você esconde as coisas de mim, e bá-bá-bá, caixa de fósforo. E Marietta lá: com aquela cara de quem não fez nada demais. E Paulo queria explicações. Mas ela nada disse. Estava certa de que não havia mais o que dizer, pois não já havia revelado a gravidez? Agora tinha de dar explicações?

Mas Paulo estava muito mais retado do que Marietta pensava. O que mais ela escondia dele? E foram surgindo desconfianças... Dias depois não houve dois tês nem barriga que segurassem Paulo. Ele desceu a infinita ladeira e não voltou mais. Coisa de doido!

Cigana

Dia chaaato! Nada ocorre a não ser o de sempre. Sempremente o de sempre. Sair de casa, pegar condução até muito longe. Suportar aqueles adolescentes que não querem ouvir a aula que você não quer dar. Sabe? O mesmo de sempre, como sempre.

Saiu da escola e foi esperar sentado na praça mixuruca o buzu. Olhava para todos os lados, como se isso pudesse apressar o tempo que se esquecera de sua função: passar.

Daí que viu. Na curva da estrada, felizmente asfaltada, um esvoaçar alaranjado. Um vestido de cigana. E com uma cigana dentro. Melhor: um vestido andando sem cigana poderia parecer meio estranho.

Na maresia da tarde daquele fim-de-mundo a figura da cigana era inesperada. Mas como inesperada? Havia uma comunidade cigana bem ali perto. De qualquer forma, porém, espantava-o a cigana e sua destreza ao segurar as suas sacolas caminhando suavemente, alaranjadamente, pela tarde azul. Levando com seu rebolar característico as compras e quase todos os poucos olhares disponíveis.

Pensou em segui-la, conversar, saber quem era e tudo o mais. Mas que nada: e estragar aquele evento? O único do dia que realmente merecia esse nome? Limitou-se a olhar... Olhou para ela até que sumisse, dobrando a esquina em direção ao acampamento.

Mas o esvoaçar alaranjado na tarde azul ficou, pairando no ar, acontecimento vibrando como uma corda de violão quando é ferida aleatoriamente.

Buzu chegou e ele se foi.