27 março 2011

Ponto de Intersecção

Passa das 22 horas. O palco de Ivete já está montado na Praça Cairu. Mas eu apenas espero o ônibus no ponto em frente. Um vendedor de cd pirata toca Roupa Nova e Roberto Carlos. Nas alturas. Cantarolo alegre “Como é grande o meu amor por você”. Passa um mendigo. Certamente meio maluco. Uma figura enfiada num paletó cáqui surrado e tão sujo quanto o chão. Talvez mais. Mas o que de fato me chama a atenção é que o mendigo cantarola alegre “Como é grande o meu amor por você”. E eu, que sou pouco mais rico que um mendigo, percebo mais uma semelhança entre mim e ele. Cantarolamos alegres a última canção da noite, unidos por essa coincidência pontual. Absolutamente humanos.

19 março 2011

Diário de menino

Hoje olhei a chuva. Gostei não. Nem sair de casa eu pude. Fiquei só na janela, olhando tudo molhado. A chuva mijando pela rua (mainha disse que eu não devo mijar na rua, nem dizer mijar: urinar, eu acho que é assim). Por que que a gente não pode brincar na chuva? Eu acho que a chuva é muito boa pra brincar. Os adultos dizem que não, mas não acredito nos adultos por causa de uma coisa que eu descobri. Mas tô com preguiça de escrever agora e amanhã te conto.

Diário de menino - Explicação (des)necessária

Esse é o diário de um menino. Uma criança tentando entender o mundo. Tentando classificar, explicar, definir o que o cerca. Dará certo? Incerto. Mas estamos, eu e o menino, dispostos a tentar.

15 março 2011

Ao sol

Já se encontrava a meio caminho em seu passeio diário pelo céu quando viu. Ao lado da grande escavação que seria o alicerce de uma casa, uma mulher agachada. Óculos escuros (sentia sempre certo orgulho ao perceber que as pessoas precisavam se proteger de seus raios poderosos). Roupa estranhamente colorida. Aparência pensativa. A mulher não devia estar ali. Definitivamente não era o lugar daquela figura bizarra. Na verdade, nunca entendera os humanos. Já os observava desde o princípio dos tempos e não os compreendia. Mas certas coisas tinham um padrão, uma normalidade.

E aquilo não era normal. Eram quase seis horas quando percebeu o que aquilo significava. Prometeu me contar amanhã.

14 março 2011

Sayd

Para Ricardo Ishmael

De sorte que o gato

Olhava-me assim

Como se não fosse eu seu dono,

Mas ele dono de mim.

06 março 2011

Gueixa

Estava encostada no carro branco e esperava. Uma gueixa. Nada mais enviesado, no centro da cidade de Salvador, bem no Comércio. Nada mais comum, no centro da cidade de Salvador, bem no carnaval. A peruca, com o penteado tradicional. O rosto esbranquiçado pela pasta d’água e maquiado bem de acordo com o padrão das gueixas orientais. A sombrinha de praxe – vermelha – abandonada displicentemente sobre o ombro. Apenas a roupa – sensual, curta demais para uma gueixa de verdade – deixava entrever os pêlos do peito e da perna. Encostada no carro branco a minha gueixa esperava – o quê? – por alguma coisa que não veio. E ficou pulsando na minha tarde vazia. Na Castro Alves, o primeiro trio inaugurava mais um dia de carnaval.

03 março 2011

À guisa de despedida

Estamos nos preparando para seguir o mesmo caminho de Chico e das duas Anas. E, nesta encruzilhada de nossas existências, aproveito para rememorar...

Lembram-se dos primeiros dias? Eu e Tatinha já nos conhecíamos. Já éramos almas gêmeas. Sentamos juntos bem na frente e fizemos cara de paisagem... Que mentira! A gente começou foi a entrevistar nossos coleguinhas! A jornalista nela e o tagarela em mim não nos deixaram ficar quietos por muito tempo. Começava uma relação que – mal sabíamos – seria maravilhosa. Cristian, nossa mãe adotiva nos recebeu muito bem. Fica aqui registrado o carinhoso agradecimento por proporcionar a melhor primeira impressão possível. Os primeiros dias foram demais – e serviram de prenúncio para os seguintes.

Bem aos pouquinhos fomos descobrindo, eu e Tatinha, que nossas almas não eram gêmeas. Eram trigêmeas. Tib juntou-se a nós para formar o trio mais parada dura que essa empresa já viu. Eu acho que eu e Tib atuamos como agentes (des)equilibradores de Tatinha. Nem sei se a gente ajuda mais ou atrapalha mais. Mas no fim dá certo.

Graças a Deus nós três formamos uma turminha coesa, mas aberta. Já pensaram nas oportunidades que perderíamos se não conhecêssemos melhor os outros? Gleice é uma mulher de peito. Divertida, debochada na medida certa e sempre se preocupando com detalhes que outros não percebem.

Píter é encantadoramente tímido. A gente teve de cutucar ele algumas vezes... Mas no fim, percebemos o quanto ele é gente boa. Obrigado por se ter aberto para nós. Não esqueceremos.

Adriana tem cara de quietinha... mas é só a cara. Esse ar de menina tímida esconde uma personalidade criativa – foi ela quem primeiro chamou Tib de Tibirabiron – além de muito afetiva. Mas que ninguém se engane: poucas vezes vi alguém tão observadora.

Soninha é outra que pensa que me engana. Corajosa e decidida, mostrou com sua linda história de amor o quanto vale a pena se arriscar para ser feliz. Acho que todos aprenderam essa lição. Linda história, linda mulher.

Nossa fólio ambulante é uma graça, não? Muito inteligente e de uma inocência fascinante é daquelas pessoas que, quando se vão, deixam muitas saudades. Cadê meu suco de cajá, Ingrid?

E eu nem vou falar dos lanchinhos de sábado. Foram momentos divinos. Lindos momentos de descontração e integração. De repente bateu uma fome!

Mas ainda não falei da pessoa que talvez seja a mais marcante nessa história toda. Nossa grávida favorita foi exatamente o guia de que necessitamos nesta jornada. Dizer que ela é observadora, carinhosa, divertida, inteligente e exigente na medida certa é levar um copo à água das fontes. Obrigado Marcinha por nos abraçar como uma mãe aos filhos. Obrigado por nos mostrar os caminhos. Sempre que sentirmos saudades, voltaremos. Ah! Obrigado Mariana, irmãzinha nossa por dividir sua mamãe conosco. Valeu gatinha.

Finalizo, não com um adeus, mas com um até amanhã. Na verdade, com um até sempre. Lembrem-se da pedra que Piter recebeu no primeiro dia. Para sempre, tá? É um pacto: nunca se esquecer.

Agora: operação! Até lá.

17 fevereiro 2011

Tédio

Cabeça gira...

Olhos procuram – o quê?

Corpo dá voltas ao redor de si.

Levanto.

Ouço os ruídos que meu corpo faz:

O joelho estala.

Coração bate.

Músculos rangem.

E o cérebro...

- O cérebro nada.

Saio.

Na rua, marasmo igual.

Grito furioso para esconder que não sei o que fazer.

O sol se põe...

E me ignora.

14 fevereiro 2011

Um Chico e duas Anas

Lembra do ciclo da vida? Começo, meio, recomeço. Este não é o fim. Apenas o início de outra fase do ciclo. Mas como todo reinício é também uma ruptura, é natural sentir um pouco de dor. Como no nascimento. O rompimento de nossa ligação física com nossa mãe é um momento muito doloroso. Mas superamos isso: é preciso reiniciar o ciclo.

O mesmo ocorre agora. Rompemos de certa forma o cordão umbilical que nos une a nossa mãe corporativa. Dói, mas é preciso.

Muitos choraram. Nasceram. Não tiveram medo de respirar muito fundo o oxigênio estranho do ambiente totalmente novo em que subitamente penetraram. E descobriram que esse oxigênio estranho seria o sustento de sua existência a partir dali. Os mais espertos voltaram para reencontrar sua mãe. Romperam uma ligação, não todas.

Agora é a hora de vocês, um Chico e duas Anas. Completem o ciclo. Vocês vão conhecer o mundo: coragem para a luta. Ah! Voltem para contar como foi.

07 janeiro 2011

À guisa de desabafo

Eu não estava mais aguentando esse perdido em minha vida. Quase meio mês publicando uma coisa que seria só um conto de capítulo único. O problema é que o segundo capítulo me veio à mente. E daí a ideia de fazer ele andar por Salvador... Aí, já viu.

Mas eu estou feliz: acho que ficou legal. E tem mais: eu me livrei enfim desse perdido.


Glória!

O perdido – Capítulo VI

Sentado na praia da Barra, o perdido – Pedro – tivera um surto de lembranças. Um caleidoscópio de imagens devolveu-lhe a perdida memória. Como se todos os grãos de areia decidissem passar ao mesmo tempo pela ampulheta, Pedro lembrou-se de uma única vez de cada fato importante de sua vida.

Mulher, filho, amante. Pais, avós, tios. Patrão, colegas do escritório, clientes. E sua imensa paixão pela água. Mar, rio, poças e, principalmente chuva...

Tudo muito insignificante agora...

Tentou ficar feliz por recuperar a memória. Sem sucesso.

Lembrou de cada momento em que se sentiu feliz e percebeu que eram muito poucos. Pedro não desejava a vida de que se lembrara. Por alguma estranha razão, preferia agora ter vivido na angústia de não saber quem era a não ser nada do que um dia sonhara ser.

Ideia!

O perdido seguiu sem rumo pela Avenida Oceânica.

FIM